Ésquilo e a supremacia do pai sobre a mãe
Ou por que a sociedade patriarcal foi um avanço civilizatório?
A tragédia é a maior das artes gregas, apesar de não ser a mais antiga. Pode-se considerá-la como uma das etapas do pensamento helênico que foi precedida pela epopeia e pela poesia lírica até resultar em um híbrido de ambos os gêneros, com a seguinte diferença: nela o homem encontra-se a sós consigo mesmo na encruzilhada de uma decisão. Se na Ilíada, Aquiles e Heitor não hesitam em ir na direção do destino que os chama, o mesmo não ocorre com Orestes e Medeia, que mesmo decididos, tropeçam nos próprios pensamentos e a narrativa concentra-se no drama que precede o ato. Nela a aura do enigma brilha como peça fundamental porque trata sempre da escolha mais extrema que podemos fazer: o assassinato. E por sua vez, o assassinato está diretamente relacionado com os valores basilares da civilização - não existe tragédia grega onde valores civilizacionais não estejam invertidos. Se Édipo comete incesto, se Creonte recusa sepultar o irmão de Antígona tudo isto levará cedo ou tarde ao assassinato e consequentemente à desordem. Assim, as tragédias mais perfeitas são investigações dialéticas de quando as forças da tradição colidem frontalmente com nossos mandamentos éticos mais íntimos e só um deles deve prevalecer.
Ésquilo é o grande inaugurador dessa arte. A Oresteia inteira é uma investigação sobre quem deve ter precedência na sociedade, o pai ou a mãe? Nela a necessidade de vingar o assassinato de Agamemnon, vítima dos ardis da esposa, possui mandamento divino: Apolo ordena Orestes a vingar o pai matando a própria mãe, que em meio às súplicas não é perdoada pelo filho. No entanto, o homicídio não pode passar impune e é a vez das Fúrias, ou deusas da vingança, fazerem justiça a Clitemnestra. Fugido, Orestes recorre à proteção de Apolo. Chega-se a um impasse que só um deus poderá resolver: A absolvição do assassino implica a desobediência de leis ancestrais cuja guarda pertence às Fúrias desde tempos remotos, sangue se lava com sangue. Orestes vai a julgamento, num placar apertado, Atena vota em seu favor pelo argumento de que o pai possui a semente da vida enquanto a mulher é apenas o polo passivo e fecundante. A revolta das Fúrias equivale ao colapso do universo. Para acalmá-las é proposto um acordo, elas aceitam, a civilização está salva, a ordem é restabelecida.
O remorso de Orestes, pintura de William-Adolphe Bouguearau, 1862.
A situação extrema de Orestes não é fortuita, trata-se de uma reflexão sobre duas tradições que disputaram terreno na Europa pré-histórica, a sociedade matriarcal contra a sociedade patriarcal. Em “Os mitos gregos” Robert Graves reuniu uma coletânea de narrativas antiquíssimas, remontantes ao período neolítico, que refletem esse confronto. Nessa Era a Europa cultuava de maneira hegemônica a figura da Deusa-mãe, não havendo deuses masculinos. Os homens estavam subjugados à figura da matriarca, que inclusive possuía muitos amantes, e eram sacrificados em ritos de fertilidade consagrados ao período lunar. A migração de Jônios e Eólios vinda do Leste constituiu a onda patriarcal que destronou gradativamente o reinado das mulheres onde finalmente os homens passaram a ser a classe mandante na figura do rei. Dessa forma, os mitos gregos mais antigos seriam a história político-religiosa da nova situação: Belerofonte mata Quimera, Perseu decapita Medusa, Apolo mata Píton. Inclusive as narrativas de deuses que raptam e violam mulheres provavelmente referem-se aos casamentos forçados entre chefes helenos e sacerdotisas do antigo regime, concretizando, por conseguinte, a predominância do masculino sobre o feminino.
Trata-se de um avanço. A sociedade patriarcal é guerreira, vingativa e escravista, mas é nela que se pavimenta o longo caminho para que a vida humana não seja mais oferecida em sacrifícios. Não obstante, seriam os rituais homicidas vestígios das sociedades matriarcais? Graves explica que as levas migratórias eólicas e jônicas destituíram as mulheres da política, mas mantiveram-nas como guardiãs dos mistérios religiosos, o que de certa forma era preservar o poder matriarcal dos tempos neolíticos. O mistério permanece insolúvel. O certo é que o mui difundido mito de Agamemnon e Clitemnestra por toda a Grécia reflete o fim do tabu ancestral do matricídio como o crime mais abominável que poderia existir, o parricídio assume o primeiro lugar. Ésquilo bebeu dessa fonte para reinventá-la em moldes artísticos, e talvez ainda houvesse em seu tempo escassas tribos governadas por mulheres.
Na tragédia o assassinato pode revelar a verdade, no entanto não se trata nunca do mero prazer de matar, tão comum nos filmes sobre psicopatas de hoje, mas sempre do crime justificado: Clitemnestra tem boas razões para odiar o marido por ter subtraído a vida da filha Ifigênia, já Egisto, seu amante, teve o pai destronado por Agamemnon. Amante e marido são filhos de Triestes e Atreu, irmãos e inimigos, que, na disputa pelo trono de Micenas, valeram-se dos mais diversos crimes contra si. Ou seja, há uma cadeia de acusações motivadoras de vinganças que se sucedem de geração a geração formando um imbricado problema de legitimidade. Como pôr fim a este caos? Bem neste ponto Orestes levanta uma concepção muito cara aos Gregos: o da ordem cósmica. Apesar de todos os defeitos, Agamemnon é antes de qualquer coisa o comandante em chefe vencedor de uma guerra, isto o eleva acima de tudo. Qual mulher seria capaz de tamanha proeza? Matá-lo na sombra da traição é inverter o ordenamento criado por Zeus, e Egisto não possui o mesmo mérito. O pai tem precedência sobre a mãe.
Nada mais sugestivo que uma deusa aplacar o ímpeto das Fúrias. Atena, filha de Zeus, propõe a elas um novo papel, o de trazer a fertilidade ao mundo através dos bons ventos, das boas colheitas e das boas proles. Não cabe mais à mulher aplicar a lei assassina da vingança - isto ocorrerá apenas no âmbito da vontade pessoal, vide o exemplo de Medeia – porque onde o feminino prevalece sobre o masculino há castração, assassinato e suicídio. As Fúrias são rebatizadas como “As Solenes” e receberão as devidas honras por isso.
Aparentemente tudo isto indica que a humanidade passou por um longo período de encubação sob o jugo feminino, como a criança dependente da proteção materna, encerrada em tribos sem nenhuma pretensão expansionista. Aquilo que é conhecido como potencial masculino nem sempre foi uma obviedade, precisou ser descoberto e quando houve a virada para o sistema patrilinear, com suas genealogias, iniciou-se a criação dos domínios, das cidades-estados, impérios e finalmente começou-se a fazer história.
A Oresteia universaliza esta concepção porque a retira do espaço mitológico circunscrito na massa mineral do coletivismo para remodelá-la na dimensão interior do indivíduo. Por outro lado, também ocorreu, pela primeira vez, a separação do mito com a realidade na qual o público está ciente de que a peça é uma interpretação ficcional moldada pela liberdade do artista - Graves explica que um mito autêntico, tomado como real, é aquele que se transmuta em ritos e cultos. No entanto, ritos e cultos perecem, só a arte eterniza o mito. E assim como os mitos originaram a épica e a lírica, e estas deram origem à tragédia, esta, por fim, tornou possível a filosofia socrática. Se a mitologia grega, e somente ela, significa tanto para nós é em razão dos filhos que criou.
Não tinha visto este aqui. Estou obscenamente atrasado nas minhas leituras de Substack. Obscenamente.